• “Paulo Freire 100 años de sueños”, de Camilo Álvarez.

    Por Camilo Álvarez López (CEAAL Uruguay) Montevideo Este año, se cumplen 100 años del nacimiento del Brasilero Paulo Freire. Si bien su impacto es mundial, trascendiendo fronteras, su impronta es típica y claramente latinoamericana. Fue tal su impulso y su legado que hoy podemos ubicar su propuesta pedagógica dentro de las grandes corrientes pedagógicas mundiales. Siempre, los hombres y mujeres son producto de su contexto, pero pensar que es el único movimiento sería apelar a lo conservador. Por eso, también siempre, los hombres y mujeres producen su contexto. En palabras de Freire, educar no es un acto de transferir conocimientos sino de producirlos y crearlos. Paulo Freire representa una síntesis en la praxis transformadora latinoamericana. Nos detenemos un poco aquí, para mencionar ante todo, la propuesta pedagógica de Freire tiene en su centro una intencionalidad política para transformar la sociedad, para que cada uno/a diga su palabra. Para construir sujetos históricos de cambio social. Esto es fundamental, porque no su propuesta de alfabetización implicaba la posibilidad de leer el mundo, ademas de los libros, para transformarlo. Una pedagogia del oprimido para que en su proceso de concientización y liberación pueda también liberar al opresor. Porque no se trata de que los oprimidos de hoy sean los opresores de mañana. El cambio es siempre en colectivo y el proceso de concientización que desarrolla Freire no es unilateral ni externo, sino horizontal y en conjunto. Hoy, se ha confundido mucho esta propuesta entre un extremo de “coaching” donde se confunde dinámica con metodología; trabajo en grupos con intencionalidad política, democracia con voto. Por otro extremo que coloca a lo/as postergado/as de la historia como un numero estructural que no se puede mas que “ayudar”. Por otro lado, la rica y diversa vida de Paulo, nos anima a comprender que desde cualquier lugar se pueden impulsar cambios. Por su incidencia, por lo que representaba y por lo que proponía vivió exiliado muchos años y muchas veces. En cada etapa pudo desarrollar y complementar su proyecto siempre al lado de los nadies, de los olvidados del sistema, de los excluidos para que pudieran decir su palabra. La vinculación con Uruguay de Freire es mas importante de lo que a veces parece. Quedó guardado y grabado su discurso en 1989 cuando estuvo en Montevideo. Conversando con el pueblo, con maestra/os, ante la mirada atenta de Reina Reyes que además lo presentó. Pero mas atrás en el tiempo, específicamente en 1968, se publica en la revista Cristianismo y sociedad, que pertenecía a ISAL (Iglesia y Sociedad en América Latina) como suplemento lo que es una antesala de Pedagoga del Oprimido. La publicación llevó por nombre: “Contribución al proceso de concientización en América Latina”. Siguiendo este pequeño recorrido, es importante destacar que hasta ese entonces en Paulo Freire encontrábamos mas bien el concepto de Cultura Popular y se hablaba de propuesta como “el método Paulo Freire”. Sin embargo el concepto de Educación Popular identificando los procesos pedagógicos desarrollados en la educación formal, en las organizaciones sociales, eclesiásticas, etc aparece en un libro que es publicado con el nombre del teólogo uruguayo Jorge Barreiro (vinculado a la revista Cristianismo y Sociedad) bajo el titulo de “Educación Popular y Proceso de concientización” con la editorial Siglo XXI. En distintas charlas, pude escuchar a Carlos R Brandao haciendo referencia a este libro, que se decide publicar de esa manera ya que el y otro/as educadore/as que participaban de los procesos de educación popular, estaban requeridos, perseguidos, etc por la dictadura de Brasil y distintas derechas conservadoras que veían con peligro el desarrollo de ideas liberadoras. Paulo Freire, como antes Marieteguí fue un precursor del concepto “Pueblo”, un concepto por cierto muy latinoamericano en su acepción de sujeto histórico de transformación. Pueblo como representación de las y los oprimidos de América Latina. Un espacio amplio de integración y movilización en el ejercicio de las reivindicaciones y proyectos para lograr la liberación. Este año, se prenderán cientos de velas para recordar a Paulo, cientos de voces para decir la palabra verdadera, cientos de praxis para transformar el mundo. Continuar su legado es seguir peleando por una sociedad mas justa, desde todos los rincones con la voluntad de que los procesos y las transformaciones mas importantes de la historia, las hacen los pueblos.  


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  • “Paulo Freire, a primavera e o tempo de esperançar”

    Por Delana Corazza, Maria de Lurdes Ide e Cristiane Ganaka   O mês de setembro marca a chegada da primavera no hemisfério Sul. O florescer traz consigo a ideia de renascimento, regeneração, reinício. Nessa áurea como só os trópicos conhecem, certamente em um dia ou noite quente do Recife, anunciando a chegada da nova estação, nasceu Paulo Freire, em 1921. Semana passada, em virtude do aniversário de seu nascimento, deu-se início a Jornada Esperançar América Latina: rumo ao centenário de Paulo Freire. Relembramos uma breve passagem, em que ele retratava de forma muito amorosa sua infância: “meu primeiro mundo foi o quintal de casa, com suas mangueiras e cajueiros… Ali engatinhei, andei, balbuciei, me pus de pé, andei e falei… eu fazedor de coisas, eu pensante, eu falante”. Germinava ali um “andarilho da utopia”. Tempos mais tarde, Paulo Freire nos mostrou, entre infinitos ensinamentos, que a “leitura do mundo precede a leitura das palavras”: o quintal de sua casa foi sua primeira leitura do mundo. O centenário do nascimento de Paulo Freire é marcado pela maior crise sanitária dos últimos cem anos, oriunda de uma pandemia. Porém, isso não é um problema criado somente pelo coronavírus, mas sim resultado da organização de uma ordem econômica a favor do sistema financeiro que há tempos tem gerado graves problemas de ordem social. Esse cenário global tem despertado em nós, que acreditamos que é possível um mundo mais humanizado, múltiplos sentimentos de angústia, sofrimento, insatisfação, raiva, tristeza, apatia e impotência. Em um exercício diário de pensar e refletir os atuais acontecimentos sobre o mundo que nos cerca – e usando as lentes de uma perspectiva antropológica freiriana, de que o ser humano é inacabado, inconcluso e incompleto, que somos seres por se fazer, sempre movidos pela curiosidade e inquietudes – nos perguntamos quais os elementos necessários a nós militantes para que todos esses sentimentos aflorados nos coloquem em movimento e nos conduza a novos caminhos e a novos lugares. Freire nos dizia que ter a consciência que “somos seres inconclusos” só fará sentido se juntarmos isso a uma luta política pela transformação da realidade; caso contrário cairá no fatalismo, pois, todos nós somos sujeitos capazes de promover a mudança; toda realidade está ai para ser modificada. Como manter nossos sonhos com justiça, ética e liberdade nesse momento tão particular da humanidade marcadas por crises econômica, política, ética e agora sanitária? Em seu texto “A história como possibilidade”, Freire inventariou cinco dilemas que continuam desafiando a humanidade: o desequilíbrio Norte-Sul; a fome no mundo; a violência em todas as suas dimensões; a ameaça fascista e a estupefação da esquerda. Por isso indagamo-nos o quê Paulo Freire ainda poderia nos ensinar se estivesse presencialmente entre nós. Ao buscar referências em seu imenso legado – constituído de muitos ensinamentos e aprendizados – que possa nos reorientar sobre um pensar, um agir e até mesmo que sirva de acalento para nossos corações, encontramos entre tantas “bonitezas” e “tesouros” as reflexões sobre a ESPERANÇA. Nesse sentido, em virtude da tamanha urgência e necessidade em face de nossa atual “desesperança”, que iremos nos debruçar sobre esse elemento. Antes de tudo, Paulo Freire se denominava um ser esperançoso, “não por pura teimosia, mas por imperativo existencial e histórico”. Em uma de suas obras, Pedagogia da Esperança, Freire ressalta que a esperança é necessidade inerente ao ser; sem um mínimo dela não podemos sequer iniciar algo. Por isso dizia que “seria uma contradição que uma pessoa progressista que não teme a novidade, que se sente mal com as injustiças, que se ofende com as discriminações, que se bate pela decência, que luta contra a impunidade, que recusa o fatalismo cínico e imobilizante, não seja criticamente esperançosa”¹. Dizia que é preciso ter esperança do verbo esperançar. Esperança do verbo esperar é espera. Já esperançar é ir atrás, construir, levantar adiante. “Esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo. A esperança é um condimento indispensável à experiência histórica, sem ela, não haveria história, mas puro determinismo. Só há história onde há tempo problematizado e não pré-dado, a inexorabilidade do futuro é a negação da história”. A esperança tem essa dimensão coletiva, de “sujeitos históricos que constroem no campo da existência, o amanhã, e este amanhã tem que ser feito por nós enquanto sujeitos e objetos da história. Porque, enquanto estamos fazendo este amanhã na transformação do hoje, nós somos também condicionados pelo hoje que veio do ontem. Então, ninguém é só sujeito da história. Mas é exatamente porque sei que sou objeto que posso transcender a condição de ser objeto e virar sujeito também”. Esse curto reencontro aqui com a ESPERANÇA definida por Paulo Freire nos relembra que a história não está dada, que o nosso horizonte e nosso amanhã dependem de nossa luta e nossa organização de classe . “O mundo não é, está sendo”. Uma das inúmeras características de Freire era sua forma particular de criar ou reinventar termos e conceitos para se expressar, afinal tudo está em constante construção. O termo “Que fazer” foi um desses conceitos e se encaixa às nossas atuais reflexões. Para tornar mais concreto, citamos aqui os versos de sua Canção Obvia que nos mostra muito bem o sentido dessa expressão “que fazer”: “que” designa a busca de uma direção e o conteúdo para a ação, e o “fazer” diz a forma direta que se trata de um agir no sentido de produzir algo². Toda “boniteza” de sua vida também está expressa nesse poema publicado na Pedagogia da Indignação após sua morte física, e escrito durante seu exílio.   Escolhi a sombra desta arvore para repousar do muito que farei, enquanto esperarei por ti. Quem sempre espera na pura espera Vive um tempo de espera vã Por isto, enquanto te espero Trabalharei os campos e, Conversarei com os homens Suarei meu corpo, que o sol queimará; Minhas mãos ficarão calejadas; Meus pés aprenderão os mistérios dos caminhos; Meus ouvidos ouvirão mais, Meus olhos verão o que antes não viam, Enquanto esperarei por ti. Não te esperarei na pura espera Porque o meu tempo de esperar é um Tempo de quefazer Desconfiarei daqueles que virão dizer-me: Em voz baixa e precavidos: É perigoso agir, É perigoso falar É perigoso andar É perigoso, esperar na forma em que esperas, Porque esses recusam a alegria da tua chegada. Desconfiarei também daqueles que virão dizer-me Com palavras fáceis, que já chegastes, Porque esses, ao anunciar-te ingenuamente, Antes te denunciam. Estarei preparando a tua chegada Como jardineiro prepara o jardim Para a rosa que se abrirá na primavera.   Na busca desse “Que fazer”, Paulo Freire disse também que uma tarefa do Sul era começar a sulear, deixando assim de ser norteado.³ Sulear é também nos debruçarmos em nossa realidade e bebermos das formulações dos pensadores de nosso continente para estarmos e agirmos no mundo. Em diálogo com Paulo Freire, o colombiano Fals Borda difunde na década de 70 uma nova forma de fazer ciência a partir do chão latino-americano, compreendendo o enfrentamento às opressões como possibilidade de análise científica. Este enfrentamento passa a ser, portanto, não somente prática política, mas também a possibilidade concreta de leitura da realidade e de construção de conhecimento. Subverter a ordem é tarefa científica do pesquisador militante; é a partir dessa subversão que criaremos nossos códigos de interpretação da realidade que vivemos para compor, radicalmente, a nossa narrativa. Essa narrativa da realidade latino-americana deve ser construída a partir do olhar do nosso povo, de sua história, sua trajetória e, principalmente, de sua participação na luta contra as opressões vividas historicamente.   Eu sou um intelectual que não tem medo de ser amoroso. Amo as gentes e amo o mundo. E é porque amo as pessoas e amo o mundo que eu brigo para que a justiça social se implante antes da caridade. (Paulo Freire)   Somos cientes de nossa tarefa na condição de sujeitos históricos, capazes de promover mudanças e imaginar um futuro para continuar desejando sonhos, utopias e justiça social. Viver sem sonhos seria a negação de nossa “vocação ontológica para ser mais”. Já compreendemos que não queremos voltar ao “normal”, pois esse “normal” já não era bom para nós, classe trabalhadora. Assim, no inverno que vivemos já há alguns meses, as forças populares têm insistido em transformar o frio em flores, resistindo ao fatalismo e transformando o medo em esperança, esperançando. As tantas mãos trabalhadoras em uma conexão histórica entre o campo e a cidade têm enfrentado a fome que avançou assim que a pandemia se fez assustadoramente presente nessas terras. A reforma agrária e suas bandeiras vermelhas colorindo os campos desse país tem dado respostas objetivas para a crise a partir do alimento sem veneno, plantado e cultivado pelas mãos camponesas. Desde o início, diversas organizações populares se reuniram e construíram uma campanha de solidariedade que se denominou Periferia Viva. A doação de alimentos saudáveis, seja em forma de cestas ou na elaboração de marmitas, tem sido o marco da campanha e possibilitado a construção de vínculos e organização nos territórios. O Tricontinental, compreendendo sua tarefa de desvelar a realidade a partir da experiência militante, tem se desafiado a construir, difundir, testemunhar e disputar o conceito de solidariedade, observando ativamente o trabalho de base. Nos últimos anos, diversas organizações de esquerda têm se debruçado sobre a necessidade de consolidar um trabalho de base nas periferias das cidades que avançasse na construção de uma nova sociedade. Nesse momento, em diálogo direto com o povo, com a necessidade do povo, Paulo Freire se faz presente na fala curta de um companheiro do Periferia Viva: “o aprendizado vai se dando no fazer”. Por tempos, a profundidade dessa frase que dialoga com os ensinamentos de Paulo Freire e Fals Borda, ainda que presentes nas diversas formulações e discursos, não se concretizaram radicalmente enquanto prática, e é nesse momento que o fazer, fundamental na prática libertadora de Paulo Freire, se coloca como princípio para a disputa. Mais do que o medo da doença, o medo da fome atingiu diretamente os trabalhadores mais empobrecido das cidades. Saciar a fome do povo, algo tão genuinamente humano, foi muitas vezes visto com ressalvas no nosso campo por estar muito conectado às ações assistencialistas de instituições mais conservadoras. No entanto, a realidade e – nos atrevemos a dizer – o amor ao próximo em seus sentido mais radical, se colocaram como determinante nas ações. Para o militante, saciar a fome é mais do que o ato em si, que já é tanto, mas “fazer da fome uma presença chocante, constrangedora e revoltante entre nós”4, como bem nos ensinou Paulo Freire. O alimento doado proporcionou vínculos e relações de confiança, criando espaços para entenderem o absurdo de não ter o que comer. Não sejamos ingênuos achando que, necessariamente, a recepção do alimento é algo passivo. Ousemos acreditar na inteligência e curiosidade do povo e na capacidade da construção de contranarrativas a partir dessas ações. Esse acreditar deve ser profundo e verdadeiro, “o nosso testemunho (…), se somos progressistas, se sonhamos com uma sociedade menos agressiva, menos injusta, menos violenta, mais humana, deve ser o de quem, dizendo não a qualquer possibilidade em face dos fatos, defende a capacidade do ser humano de avaliar, de comparar, de escolher, de decidir e, finalmente, de intervir no mundo”5. A batalha de ideias segue em curso, dialogando estreitamente com a realidade. Concretiza-se na disputa cotidiana de narrativas, mas morre se não percebemos no outro alguém capaz de ser. No percurso das ações e no avanço da organização nos territórios, novos sujeitos se colocam como parte fundamental do processo, como a construção dos agentes populares de saúde, moradores dos bairros atendidos que, a partir de um processo de formação sobre prevenção e cuidados, avançaram na contranarrativa do negacionismo do presidente Jair Bolsonaro em relação ao vírus. “O povo cuidando do povo” anuncia uma nova forma de organização e de estar no território. Suas ações cotidianas possibilitaram ainda mais afinar o olhar para a realidade desses espaços. A oportunidade de gestar um novo militante a partir da prática do cuidado é um dos elementos do avanço na disputa da solidariedade. A pergunta do povo com fome “por que essa gente sem terra está nos doando alimentos?” tem sido um caldo grosso de inúmeras possibilidades, e os militantes souberam disso.Estiveram atentos e seguem construindo a pedagogia da escuta: ouvir as perguntas, compreender a leitura do mundo através delas, “desmontar a visão mágica” da “vontade de Deus” e construir de forma conjunta as respostas. A pedagogia da escuta também questiona: “por que você tem fome?” As respostas transcendem o fatalismo, geram novas reflexões e, necessariamente, ações. “A tarefa progressista é (…) estimular e possibilitar, nas circunstâncias mais diferentes, a capacidade de intervenção no mundo”6. Compreender o outro como parte daquilo que se é, enquanto sujeito classe, é o oposto do assistencialismo, que prevê em suas ações o silenciamento do povo, assim como sua submissão. Os militantes do Periferia Viva têm carregado em suas mochilas a máscara, álcool em gel, poemas, amores e medos; carregam Paulo Freire, pensadores populares, mulheres em luta nas nas periferias e nos campos e a história de tantos outros militantes, mas não estariam ali sem a capacidade de esperançar. As tantas periferias de nosso país têm sido a terra fértil de um povo que, acostumado a ajudar e ser ajudado em seu cotidiano, se vê agora desafiado a se auto-organizar e a compreender o seu território como espaço de cuidado e autocuidado coletivo. Essa solidariedade popular, tão presente na necessidade imediata das tantas gentes, é alimento da luta e semente do avanço na disputa de um solidariedade revolucionária. Senhorinha, militante de Olinda, da mesma Pernambuco de Paulo Freire, aprofunda a reflexão: “a solidariedade popular é a capacidade criativa que o nosso povo tem em momentos de maior crise encontrar coletivamente as respostas dessa crise. O nosso povo já tem o germe da solidariedade: mãe leva o filho da vizinha na escola, Dona Maria que só tem um quilo de eijão divide com José que não tem nenhum, mas a solidariedade de classe é a gente se perceber como um povo, como uma classe que é explorada, oprimida o tempo todo, é essa necessidade de ajudar o outro chamando-o a perceber a realidade que está inserido. Não é ensinar a pescar, mas perguntar por que ele, ainda que possa aprender a pescar, não tem a vara”. A pandemia colocou, dramaticamente, a possibilidade de repensarmos nossas práticas e reinventarmos nossas ações e formulações, nos desafiarmos a desvelar e disputar essa nova solidariedade, imbuídos da esperança que Paulo Freire nos ensinou, fincada na prática militante, na ação concreta que nos desafia a fazer e mudar a história. O alimento da esperança é a luta, ancorada no fazer, que possamos nos nutrir e alimentar os nossos sonhos. Ainda que doa, é tempo de primavera, ousemos plantar!   ¹ Pedagogia da Autonomia, Paulo Freire, 2016, p. 71. ² Dicionário Paulo Freire, 2010, p.335 ³Paulo Freire, Pedagogia da Esperança, 1992, p. 90-91. 4 Pedagogia dos sonhos possíveis, 2001, p. 38 5 Paulo Freire e a Pedagogia do Trabalho Popular, 2020, p. 115 6 Paulo Freire e a Pedagogia do Trabalho Popular, 2020, p. 116 Texto originalmente publicado en: fetape.org.br   


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  • “Educação Popular para a pospandemia: Construindo os inéditos-viáveis”, Óscar Jara Holliday

    Por Óscar Jara Holliday (*) O contexto latino-americano e caribenho desde antes da crise produzida pela pandemia do COVID 19, estava atravessado por uma ofensiva neoliberal em distintas dimensões (política, econômica, socio ambiental, cultural) que havia se estendido por toda nossa região com uma força inusitada nos dois últimos anos: o golpe de Estado de Bolívia, a virada do governo em Equador, a agressividade do governo brasileiro, o crescente bloqueio a Cuba e Venezuela, o resultado das eleições em Uruguai, etc. refletem umas dinâmicas de polarização que incluíram grandes mobilizações populares em Haiti, Equador, Chile e Colômbia, a caravana de migrantes centro-americanos, ou a derrota do partido Cambiemos em Argentina. Estes e outros fatores, como o crescente número de dirigentes sociais e ambientais assassinados especialmente em Colômbia, México e Honduras, embora também em outros países como Costa Rica, visibilizam a magnitude desta ofensiva e a polarização que ela produziu em relação a propostas e movimentos progressistas. Os primeiros meses de 2020 mostram também um preocupante crescimento de casos de agressões contra as mulheres e de feminicídios, expressão da cruel e estendida que é esta situação de múltiplas violências que vivemos. Nestas circunstâncias, surge a crise produzida pela pandemia do novo coronavírus, com consequências ainda imprevisíveis para o futuro da nossa região e para nosso planeta. A análise do seu impacto nas relações econômicas, políticas, sociais, ambientais e culturais das nossas sociedades, assim como a formulação de propostas de como enfrentar estes impactos, é objeto também de disputas entre setores e interesses de classe que atravessam todos os campos: a saúde, as condições de vida, o papel do Estado, as políticas econômicas e sociais, e tudo relativo com o educativo. Por isso, neste contexto é ainda mais necessário a disputa, a partir da Educação Popular, do modelo de sociedade que desejamos: da ética do cuidado da vida e com políticas em benefício das maiorias. Retomar, ressignificar e recriar a dimensão profunda do sentido das nossas práticas e processos organizativos em função de outro modelo civilizatório que substitua ao atual modelo cuja crise se agudiza com esta pandemia. Diante deste contexto, e das circunstâncias que vivemos atualmente na região, podemos identificar alguns desafios presentes para nossos processos: Compreender o impacto que tem e terá a pandemia do Covid-19 em todo o marco das relações das nossas sociedades, identificando como as políticas de privatização (em especial dos serviços de saúde, mas também de educação) afetam as capacidades de resposta a uma emergência desta magnitude, e a importância do papel do Estado para garantir igualdade de condições e atenção para toda a população, além dos interesses particulares. Compreender criticamente ao neoliberalismo, despido pela pandemia, em sua dimensão simbólica e cultural como produtor de subjetividades e na sua capacidade colonizadora de sentidos a partir de uma racionalidade individualista, competitiva e consumista, para construir outra visão de mundo, outra ética e outras subjetividades a partir de propostas políticas e ações solidárias e coletivas centradas no bem comum. Analisar criticamente os modelos de intervenção ante a pandemia, utilizados pelos distintos regimes latino-americanos e seus resultados. Identificar o papel das políticas públicas diante destas situações de vulnerabilidade, assim como os impactos diferenciados que esta situação provoca e as estratégias que podem evitar o aprofundamento da desigualdade que já afeta de maneira mais grave às mulheres, pessoas trans, povos indígenas e comunidades campesinas, população negra, pessoas migrantes, em situação de rua, dissidências sexuais, trabalhadoras e trabalhadores informais, populações que vivem em condiciones habitacionais precárias, etc. Identificar, promover, sistematizar e visibilizar as práticas alternativas de solidariedade, o intercâmbio desinteressado, a ajuda mútua e a participação social gerada durante esta crise, a fim de projetá-las como práticas democráticas e democratizantes que são realizadas a partir de outros paradigmas, diferentes do hegemônico atual que se baseia no mercado, em saídas individuais, na privatização e no lucro. Caracterizar as diferentes formas de outro exercício de poder que enfrentam às lógicas do neoliberalismo e do autoritarismo, que utiliza só formalidades democráticas, refletindo sobre as novas formas de construção de processos organizativos e participativos, de resistência e de re-existência com o surgimento de novas lideranças, iniciativas e novos atores sociais e políticos. Promover ações e propostas de descolonização e despatriarcalização das formas de conceber e organizar relações sociais e econômicas, gerando outros espaços e critérios de ação baseados na lógica do Bom Viver, da Economia Social e Solidária, o respeito às diversidades e ao cuidado mútuo e da natureza da qual fazemos parte. A necessidade de repensar e redefinir outras relações econômicas, sociais, ambientais e culturais com base em outra ética, em outro sentido da vida (pensar nas sociedades pós-coronavírus que queremos e agirmos, desde já, para consegui-las). Querendo ou não, estamos passando por uma mudança de época que pode constituir uma oportunidade para que _dos processos de educação e participação popular_ possamos promover com maior força o desmantelamento das lógicas e padrões culturais capitalistas, patriarcais, extrativistas, individualistas, racistas e coloniais e que, a partir de práticas solidárias, possamos construir espaços, propostas, projetos, programas que sejam protagonizados pelos setores populares e se constituam em novos referentes de outra maneira de viver. É importante entender e destacar que os processos de educação popular não são apenas um método, não respondem apenas a uma metodologia ou ao uso de algumas técnicas, mas baseiam-se em uma filosofia, um paradigma emancipatório ético, político e pedagógico. Este paradigma de solidariedade, de pessoas como sujeitos criadores de sociedades, é um paradigma expresso a partir do sentido ético da vida na construção política de outras relações de poder, que apoia e orienta uma pedagogia que_ como processo dialógico, crítico, horizontal e transformador _possibilita construir  espaços e sujeitos que edifiquem uma sociedade democrática e relações democráticas em todos os campos e níveis da vida social, como espaços prefigurativos nos quais podemos mostrar e nos mostrarmos que é possível viver de uma maneira diferente daquela imposta pelo sistema. É também uma maneira de desaprender as relações de poder autoritárias, verticais e patriarcais nas quais nos formamos, explorando outras formas de exercício de poder que sejam solidárias, sinérgicas, construtoras do coletivo. Os processos de educação popular também devem se constituir em espaço de criação de afetos, de cuidado mútuo, de construção de confiança e cumplicidades, valorizando as características de cada pessoa em sua particularidade. Espaços onde não apenas a mente, as ideias ou os argumentos estão presentes, mas por onde transita todo o nosso corpo, com nossas emoções, sensibilidades, sensualidades, empenhos e frustrações. Espaços onde se manifesta de forma viva a esperança e os sonhos compartilhados. Espaços de criação e exercício da criatividade, onde todas as linguagens e formas de expressão têm espaço para se desenvolver livremente. Por isso, a inspiração freiriana de uma educação libertadora que constrói as capacidades das pessoas como sujeitos comprometidos com a transformação social da história, implica uma formação integral na qual os processos pedagógicos podem desenvolver todas as nossas capacidades: intelectual, emocional, imaginativa, comunicacional, técnicas… Seria uma contradição levar a cabo processos educativos autoritários, verticais ou doutrinários, para alcançar processos de convivência realmente humanos e de participação democrática. Daí a crítica a educação “bancária”, por ser vertical e autoritária. Por esse motivo, a proposta de uma educação problematizadora, dialógica e horizontal, que vincula a prática à teoria, que desenvolve o pensamento crítico, a ecologia dos saberes e a vocação de humanização, desenvolvendo, portanto, as capacidades humanas transformadoras para se tornarem sujeitos da história. A proposta freiriana que apareceu pela primeira vez em seu texto Pedagogia do Oprimido, que é enfrentar “situações limites” constituindo “inéditos viáveis”, está mais uma vez presente aqui, com grande atualidade e força. A categoria do “inédito viável” é uma das categorias mais potentes do pensamento freiriano e também uma das mais relevante hoje neste momento da história, quando a pandemia está criando “situações limites” em muitos campos, o que nos obriga a pensar como é que podemos transcendê-las, superá-las. As situações limites, segundo Freire, são aquelas em que a história é apresentada para nós como predeterminada e contra a qual supostamente não há outra alternativa possível. Portanto, o que resta diante delas seria se adaptar, se resignar passivamente pois estaríamos diante de algo impossível de mudar. Mas, precisamente a categoria do inédito-viável significa a possibilidade de transcendê-las, de superá-las criticamente, problematizando-as, denunciando-as e resistindo à tentação de se resignar a elas. Supõe impulsionar um duplo movimento que é epistemológico, ético, político e pedagógico: o primeiro movimento é a indignação, a problematização, a denúncia; o segundo é o anúncio da possibilidade da sua transformação e as etapas para realizá-las. E é nesse duplo movimento que nos coloca o grande desafio de não sermos objetos de uma história que outros nos impõem, mas de sermos sujeitos da História, capazes de conceber as possibilidades, as opções que possibilitam construir nossos sonhos. O inédito-viável significa a criação de capacidades, cumplicidades, condições e disposições que nos permitem transformar as utopias em realidade na história. Isso não significa que elas possam ser feitas hoje e agora totalmente, mas que podemos fazer hoje as mudanças mais profundas que sejam possíveis, graças às quais criaremos condições para que outras mudanças que não podemos fazer agora, sim sejam possíveis. Não é uma visão gradualista de mudar “pouco a pouco” as coisas, mas sim que hoje podemos fazer a mudança mais radical – inédita – que seja possível hoje, para que sejam geradas as possibilidades de fazer mais tarde as mudanças que não podemos fazer agora. É uma pedagogia de sonhos possíveis. Esta pandemia não é apenas uma crise sanitária. Ela expressa uma crise de todo o atual modelo civilizatório dominante que não tem mais a possibilidade de continuar se expandindo em sua lógica capitalista, de dominação patriarcal, colonial, racista, extrativista e excludente. Temos que aproveitar esse momento para problematizá-la criticamente, radicalmente, como uma situação limite a ser superada, sem procurar retornar à “normalidade” que existia antes, que não tem futuro. Para enfrentar essa situação limite, não basta apenas problematizá-la e denunciá-la, também precisamos fazer mudanças, propostas, ações efetivas…, mas não se trata de qualquer tipo de mudança, mas daquelas que contêm em si a força da afirmação utópica, da democracia radical e do cuidado da vida. É por isso que esse momento histórico é um momento chave para a inspiração, para a criatividade, a articulação de muitas e diferentes iniciativas que talvez por si só não possam mudar o sistema, mas articuladas podem gerar um movimento poderoso, criando condições para outras mudanças, mais profundas, inspiradas por uma dinâmica ética, política e pedagógica que prefigure e forneça a base para uma sociedade do futuro. Uma educação libertadora, crítica e participativa pode criar espaços de liberdade, espaços horizontais de diálogo, de encontro, de inspiração criativa. Espaços democráticos que democratizem o conhecimento e as relações de poder. Sair do isolamento, do individualismo e da competitividade, para encontrar possibilidades conjuntas e solidárias que vão além da soma de nossos esforços particulares. Criar esses espaços neste momento de crise, rompendo os moldes tradicionais ultrapassados, é a possibilidade de criar o inédito viável. Por isso, o “novo  normal”, a educação pospandemia, não deve ser a que nos imponham, a partir do estabelecimento de modelos e estruturas tecnológicas que contribuam para sua privatização e apropriação pelas empresas transnacionais de telecomunicações e de  informática, mas aquele que podemos construir a partir dos processos de educação popular, promovendo o pensamento crítico, o questionamento radical, a visão holística, o respeito às diversidades, o desenvolvimento das capacidades de aprendizagem, de pesquisa e comunicação, o sentido solidário e o cuidado da vida para a transformação da realidade atual. Portanto, não faz sentido perguntar “como serão as coisas quando a pandemia terminar”, mas “como queremos que as coisas sejam quando a pandemia terminar” e trabalhar todos os dias para consegui-las. É, na realidade, uma grande oportunidade de mudar o que deve ser mudado, construindo os inéditos-viáveis. Texto original en castellano (PDF) (*) Oscar Jara – Educador Popular e Sociólogo. Doutor em Educação. Diretor do CEP Alforja, em Costa Rica. Presidente do Conselho de Educação Popular da América Latina e Caribe-CEAAL. Tradução: Leslie Campaner de Toledo Texto originalmente publicado en: Artescoladopovo.org  


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  • “Eduque como Paulo Freire: como acordar e recordar a humanização do ser humano em tempos de pandemia”

    Por: Maria do Socorro Silva Não junto minha voz à dos que, falando em paz, pedem aos oprimidos, aos esfarrapados do mundo, a sua resignação. Minha voz tem outra semântica, tem outra música. Falo da resistência, da indignação, da “justa ira” dos traídos e dos enganados. Do seu direito e do seu dever de rebelar-se contra as transgressões éticas de que são vítimas cada vez mais sofridas (Paulo Freire, 1997, p.113). Aos setenta dias de decretação de estado de calamidade pública pelo Senado Brasileiro (Decreto Legislativo n° 06 de 20 de março de 2020), devido a crise sanitária do coronavirus, faço esta reflexão num cenário de 31 mil mortes por corvid-19, num processo de tensionamento de orientações entre os poderes federais, estaduais e municipais, e uma falta de diretriz do Ministério da Saúde. Pois se de um lado vemos que somos todos afetados, como sujeitos e coletivo, de outro, vê-se que os efeitos são diferentes e desiguais entre os grupos sociais. Inicialmente transportada da Europa para o Brasil por meio de pessoas das classes média e alta, a covid-19 logo se alastrou pelo país, atingindo, sobretudo, os segmentos mais vulneráveis do ponto de vista socioeconômico. Esta “questão epocal”2, conforme nos coloca Paulo Freire, evidencia a crise do capitalismo no mundo, onde as contradições entre ricos e pobres e entre as nações só fez aumentar, explicitando as desigualdades sociais e econômicas (privatizações, desregulação e redução da proteção ao trabalho e aos mais vulneráveis socialmente),  e  a opressão expressa na violência racista, machista, homofóbica, e contra os empobrecidos das periferias e do campo, mais também, evidencia o papel da educação no processo de humanização do ser humano, em especial a função social da escola. Acentua-se uma politica fundamentada na agressão, no ódio, no desmonte das políticas sociais, na espoliação dos fundos públicos e na desregulamentação do trabalho, uma verdadeira cultura da morte, do desprezo a vida, a implementação de uma “pedagogia da crueldade”, que não se solidariza humanamente com nada e diz “e daí” para todos. Essa perspectiva se expressa na militarização das escolas e da sociedade, em projetos da Escola Sem Partido, num processo de privatização a partir da parceria entre o empresariado – capital privado com o poder público, as propostas “homeshooling” (escola doméstica), congelamento de carreira e salários dos professores/as, contestação do lugar da escola como espaço de construção de relações sociais e humanas. O debate hoje é mais do que falar mal de Paulo Freire, é falar mal da escola pública, do/a professor/a, tentar controlá-lo/a, tirando a importância da docência como suporte fundamental para o cotidiano da escola, o lugar da escola não é somente o lugar para preparar para provas e exames, mas um lugar que possibilita os processos de formação humana e de cidadania. A escola é um lugar fundamental para o processo democrático de uma sociedade. Este debate torna-se urgente e necessário, porque se encontra em curso um processo acelerado de desmonte da educação pública, o MEC, na contramão das exigências do momento, não articulam os entes federados numa perspectiva de buscar estratégias para apoiar as crianças, adolescentes e jovens estudantes neste momento de crise, muito pelo contrário, busca acentuar os mecanismos de controle da escola e do trabalho docente dentro da lógica empresarial e privatista da educação, investindo em aplicativos para assegurar as aulas remotas e as competências e habilidades da Base Curricular. Uma das grandes pautas de agora são os usos das tecnologias na educação. Ora, as tecnologias nem são propriamente o problema a ser considerado, mas sim a forma como elas são apropriadas. No sistema ultraliberal em que vivemos, elas são apropriadas como fonte de aumento de lucro para um grupo pequeno, além disto, neste momento estão buscando desmontar uma questão básica da educação – a interação presencial entre os sujeitos - discente e docente – e o contexto escolar. O que torna o processo educativo numa perspectiva crítica, fundamental como forma dos sujeitos sociais acessarem os conhecimentos e ferramentas necessários para seu processo de humanização e emancipação. O cumprimento de carga horária escolar não pode ser prioritário nem uniformizado em um contexto de pandemia, em que o que está em jogo é a sobrevivência das pessoas, sobretudo, da população em condições precárias de vida, grupo social no qual se encontra grande parte das crianças brasileiras que frequentam as redes públicas de ensino ou as instituições comunitárias que estabelecem parcerias com o poder público. Essa lógica acirra uma perseguição ideológica em toda América Latina, e especialmente no Brasil, que se evidenciaram nos últimos anos, as Pedagogias Críticas, que questionam esta narrativa hegemônica de desumanização, dentre estas se destaca, a perseguição a Paulo Freire, como formulador da Pedagogia Libertadora ou do Oprimido, que passa a ser atacado frontalmente por governos, políticos e líderes ultra neoliberais, conservadores e fascistas, que passam a impor uma visão reacionária, fundamentalista e de controle do papel e da função da escola na sociedade. Os diferentes autores colocam Paulo Freire como alguém que prezava a democracia, a liberdade, todo o seu pensamento  educacional foi  baseado no diálogo,  na horizontalidade, na relação educador/a-educando/a como parceiros na construção dos conhecimentos e na participação no ambiente educacional. A situação de desumanização dos seres humanos, que se faz presente na história e na atualidade exige um posicionamento na qual a vida seja o ponto de partida e de relação para a educação, a organização, a mobilização e a luta. Nesse momento, acordar e recordar a humanização posta na Pedagogia Freireana, torna-se fundamental, pois estaremos reflexionando sobre princípios importantes na sua proposta, tais como: a vida como ponto de partida e de chegada de qualquer prática social e educacional, a luta pela igualdade como principio da educação para suscitar a potencia que cada ser humano possui para aprender, a amorosidade regida pelo diálogo aberto, se fazendo valer da empatia recíproca para despertar no outro a vontade de ser mais (FREIRE, 1997). Neste sentido, a Campanha Latino-Americana e Caribenha em Defesa do Legado de Paulo Freire, lançada em 2019, pelo Conselho de Educação Popular da América-Latina e do Caribe (CEAAL), em aliança com diversos movimentos, organizações e entidades sociais, dentre estes a Confederação Nacional de Trabalhadoras e Trabalhadores na Agricultura Familiar – Contag3, a partir de sua Escola Nacional de Formação, nesse momento de crise sanitária, humanitária, econômica e política, torna-se ainda mais necessária na defesa da humanização, da liberdade, da justiça social e dos direitos dos “esfarrapados do mundo”. Paulo Freire: um educador comprometido com sua gente e seu tempo Paulo Freire, um pernambucano nascido em Recife, em 19 de setembro de 1921, formado em Direito, foi professor inicialmente de Filosofia, sua experiência no Setor de educação e cultura do SESI, lhe possibilitou contato com a alfabetização de jovens e adultos. Foi assim que um grupo de professores, sob sua liderança, ensinou 300 adultos a ler e escrever em menos de 40 horas, na cidade de Angicos (RN), em 1963. Isso foi gerando seu envolvimento com os movimentos populares de cultura que emergiam na década de 1960, e inclusive, o convite para coordenar o Plano Nacional de Alfabetização, durante o governo de João Goulart. Seus pensamentos e sua ação junto aos trabalhadores/as das periferias e os/as camponeses/as fizeram com que Paulo Freire fosse visto como subversivo durante a Ditadura Militar e, como consequência, foi exilado e só pode voltar ao país após 16 anos. Durante este período trabalhou em diversos países do mundo, especialmente na África e outros países da América Latina. Sempre na perspectiva da transformação de contextos sociais opressivos e a favor da autonomia e emancipação dos excluídos. Freire, em suas obras, nos chama a atenção para o caso brasileiro no que concerne à ausência  do  diálogo  relacionado  com  a  nossa  história   recente,   na  qual, desde o colonialismo, fomos atravessados por profundas relações de  subordinação, dominação e exploração. Freire  vivenciou  isso  na  carne  ao  ser exilado. Considerava essa experiência uma marca na sua trajetória: Vocês sabem que  houve  aquele  hiato  tremendo  entre  o  1.º  de abril de 1964 e o tempo da abertura. Uma das características fundamentais de todo regime de arbítrio é precisamente a tentativa  que todos eles têm feito de apagar  a  história  como  se  eles  sentissem a  necessidade  imensa  de começar a história de novo,  como se antes deles tudo fosse ruim. Fazem um hiato na história. A juventude do tempo do arbítrio fica proibida de informar-se, desaber o que houve antes do arbítrio. Houve isso no Brasil, obviamente, e uma quantidade enorme de jovens que estão aí hoje com 18, 22 anos alguns não tinham nascido quando houve o  hiato,  outros eram crianças têm uma curiosidade enorme sobre isso. (FREIRE, 1995, p.16) Essa experiência marca sua vida e obra, na qual percebemos uma profunda paixão pela liberdade humana e, ao mesmo tempo, uma rigorosa e sempre renovada busca de uma pedagogia emancipatória. Sua filiação às correntes críticas do pensamento pedagógico se estabelece desde sua primeira obra, Educação e atualidade brasileira4. Além disso, como ele mesmo defendia que, “ a melhor maneira de pensar, é pensar a prática”, as aprendizagens realizadas na sua vivencia em diferentes países, com diferentes sujeitos e povos, se expressa em seus mais de 20 livros escritos, que foram traduzidos e circulam em vários países do mundo - sendo o mais conhecido e traduzido em diferentes idiomas – Pedagogia do Oprimido. Paulo Freire é o brasileiro que mais recebeu títulos honoris causa pelo mundo. Ao todo, foi homenageado em pelo menos 35 universidades brasileiras e estrangeiras. Além disso, mais de 350 escolas ao redor do mundo levam seu nome. Freire nunca deixou de lutar pela transformação da sociedade e de questionar o poder dominante. Nunca abriu mão do sonho da mudança radical, da luta pela construção de uma sociedade igualitária, tanto do ponto de vista econômico e democrático como do ponto de vista político, racial, sexual e educacional. Esse reconhecimento identificamos na fala de renomados pesquisadores internacionais, conforme depoimento abaixo: Freire não só representa um revolucionário em educação comprometido com a libertação dos oprimidos, com a luta pela justiça social e a transformação da educação, mas sua pedagogia adquiriu um status legendário. Sua pedagogia começou como um meio de conferir poder a oprimidos camponeses brasileiros atingiu um status legendário através dos anos. Poucos educadores caminham tão sabiamente e com tanta determinação entre as fronteiras da linguagem e da cultura. (MCLAREN, 1987, p.3275) A luta pela Anistia Internacional dos presos políticos, foi uma luta importante para o processo de abertura política na América Latina, o que possibilitou seu retorno ao Brasil, em 1980, o que possibilitou a continuidade do seu trabalho em nosso país como um educador da esperança. Tendo vivido de 1921 até 1997, pode ao longo de sua vida, também rever sua forma de pensar e aproxima-la cada vez mais de sua prática engajada e compromissada com as possibilidades de se fazer mudanças, de ser autor de uma História como um “tempo de possiblidades”, sempre enfatizando o gosto de ser gente. Por isso, que nos coloca um ensinamento muito importante que as pessoas “se educam em comunhão, mediatizadas pelo mundo” (FREIRE, 1999, p. 69). Algumas reflexões para nossa prática educativa A Educação enquanto uma prática social que cria e transmite determinados tipos de saberes, de crenças, de valores, que circula numa sociedade tanto pode atuar para o processo de humanização do ser humano para transformar o mundo em que vive atuar de forma critica e criativa dentro desta sociedade como para desumanização ao manter as pessoas servis à estrutura capitalista, ao mercado, à perpetuação das desigualdades e preconceitos dentro de sua realidade. O processo de inacabamento e inconclusão do ser humano faz com que as experiências ao longo vida os tornem humanos ou desumanos. Essa visão de Paulo Freire (1978) sobre a aprendizagem da humanidade como um fazer permanente é fundamental. A educação pode ajudar a transformar o homem e a mulher em sujeitos da História. Não qualquer tipo de educação, mas uma educação crítica e dirigida à tomada de decisões e à intervenção social e política, assim manifesta uma concepção de Educação na qual: Os homens6 são vistos como seres históricos e, portanto, inacabados: na verdade, diferentemente dos outros animais, que são apenas inacabados, mas não são históricos, os homens se sabem inacabados. Têm a consciência de sua inconclusão. Aí se encontram as raízes da educação mesma, como manifestação exclusivamente humana. Isto é, na inconclusão dos homens e na consciência que dela têm. Daí que seja a educação um que fazer permanente. (p.73) Consciente dos limites macroestruturais, Freire faz a proposta de uma Pedagogia do Oprimido assente na conscientização e na dialogicidade permanente na ação. Essa conscientização faz-se através da inserção crítica dos seres humanos na realidade através da práxis, tendente à construção de uma ação deliberada e transformadora. Essa Educação ele chamou de Educação Libertadora, ou Pedagogia do Oprimido. Na Pedagogia do Oprimido temos uma educação das classes populares, onde a relação entre opressor e oprimido, precisa ser refletida criticamente. Situando-nos no campo educativo e da prática educativa, na linha de Freire, se se entende que a educação, só por si, não pode mudar o mundo, também é sabido que esta tem um papel crucial na ação problematizadora, transformadora e libertadora, portanto, a “educação forma os sujeitos que mudam o mundo”. Não podemos, por isso, pensar na educação isolada das relações sociais que lhe estão subjacentes. Os processos educacionais não têm vida própria, uma vez que têm conexões com os processos sociais. Essa perspectiva classista e transformadora foi se evidenciando gradativamente na obra de Paulo Freire, principalmente, a partir da experiência dele no Chile, no Ministério da Educação, onde trabalhou diretamente com o campesinato chileno, teve contato com o campo e se aproximou do referencial marxista, o que trouxe uma mudança na sua leitura de mundo, dos instrumentos para pensar o desenvolvimento da sociedade, pois as formas de dominação negam à maioria a capacidade de pensar, criticar, dialogar e debater sobre o mundo em que vivem. Essa concepção é fundamental para as práticas educativas junto às classes trabalhadoras do campo e da cidade, porque ela possibilita um entendimento de que o ser humano constantemente aprende e em diferentes espaços, assim, a formação política, profissional, sindical, escolar necessita dialogar com a vida, com o trabalho, com a cultura e com as lutas dos sujeitos a quem ela se destina. Assim, a Educação Popular passa a ser compreendida a partir da contribuição de Freire como uma teoria e uma prática que permeia diferentes espaços e instituições: sindicato, partido, cooperativa, organizações de mulheres, jovens, etc... Consequentemente, contribui para que possamos pensar tanta a Educação Popular na formação e na luta dos movimentos sociais como na escola pública destinada a classe trabalhadora. Portanto, os movimentos sociais começam a ser entendidos também como práticas sociopolíticas e culturais da sociedade civil que visam à realização de seus projetos por uma vida melhor (SCHERRER-WARREN, 1998), por conseguinte, sujeitos coletivos que se articulam a partir de identidades pessoais e coletivas, na luta pelo reconhecimento de seus direitos e pela afirmação de sua cidadania. E no Brasil a partir da década de 1990, tendo uma influencia substancial da Pedagogia Freireana emerge o Movimento da Educação do Campo, no qual os movimentos sociais campesinos passam a propor uma Escola que represente os interesses da classe trabalhadora do campo. É no contexto da luta pela terra, pelas águas e pela floresta que a luta por escolas se constitui como motor de mobilização no campo. Ao surgir à demanda por escolarização, o debate pela escola vai se incorporando à luta dos movimentos sociais e sindicais do campo, bem como em organizações e universidades que trabalhavam com Educação Popular junto aos sujeitos campesinos, indígenas e quilombolas. Consequentemente, uma Educação que se posiciona que se coloca ao lado dos oprimidos, isto gera dialogo e conflito, numa sociedade com tantas desigualdades e exploração suscita conflitos. Para Freire tanto o diálogo como o conflito são fatores constitutivos de um processo de construção democrática, e de uma utopia. O próprio Freire nos coloca porque práticas críticas despertam dialogo e conflito, porque para além da pseudo-neutralidade da pedagogia tradicional e da astúcia da pedagogia liberal, buscávamos mostrar como o diálogo e o conflito se articulam como estratégia do oprimido. Sustentamos que o diálogo se dá entre iguais e diferentes, nunca entre antagônicos. Entre esses, no máximo pode haver um pacto. Entre esses há é o conflito, de natureza contrária ao conflito existente entre iguais e diferentes. (FREIRE, 1995, p.6). Assumindo, tal como Freire a impossibilidade da neutralidade, e retomando as suas palavras em Pedagogia da Autonomia, “ensinar exige comprometimento”. Freire já nos havia advertido para esta “esperteza com que a ideologia dominante insinua a neutralidade da educação” (FREIRE, 1999, p. 109-110), anunciando ele, contrariamente, que na prática pedagógica “não posso ser uma omissão, mas um sujeito de opções. Devo revelar aos alunos a minha capacidade de analisar, de comparar, de avaliar, de decidir, de optar, de romper”. Ainda que algumas práticas de sujeitos coletivos venham interrogando essa forma escolar e construindo desde as contradições do presente outras possibilidades, estamos muito longe de romper com a lógica e as bases constituintes da escola capitalista, que atualmente encontra-se reforçada quando as secretarias de educação incorporam as propostas da Base Nacional Comum Curricular, das Avaliações em larga escala ou mesmo da implantação do ensino remoto como estratégias neste momento da crise sanitária. Dai porque a reação conservadora contra Paulo Freire, na verdade, essa Pedagogia Opressora, expressa na “Escola sem Partido”, na escola que forma indivíduos competentes para o mercado, com o lema de que pretende “acabar com a doutrinação ideológica”, considera os professores/as como aliciadores/as, que a escola só deve ensinar os conteúdos das disciplinas, não deve participar de manifestações, não deve trazer temáticas da realidade para discutir em sala de aula, etc.. Nessa tentativa antidialogica de limitar a liberdade explicita a liberdade, explicita o contexto repressivo e autoritário que está em curso. Precisamos acreditar na educação crítica, o que implica levar em conta a prática da cidadania e da democracia. Ambas contribuem para a emancipação e para uma educação viável para as  classes  populares.  Uma educação  que  promove  vivências  de solidariedade, fraternidade  e  democracia  na  qual professores/as  são  intelectuais  e, portanto, fazem uma leitura crítica do mundo. Por isto, que para vários educadores/as, pesquisadores/as de todo o mundo as contribuições de Paulo Freire continuam atuais para os desafios da educação contemporânea. Conforme expressa Mc Laren (1987, ) o humanismo radical de Freire continua a “oferecer alguns dos mais importantes desafios às mais brutais políticas e práticas que infectam o mundo hoje – guerra, imperialismo, globalização capitalista, repressão política, tortura, racismo, patriarcado, homofobia e triunfalismo religioso”. Freire (1984) diz que o diálogo entre os seres humanos e o encontro desses para ser mais, precisa ir além das palavras. Esse diálogo necessita pronunciar a palavra verdadeira, a qual tem por objetivo transformar o mundo. Quando Freire fala em lutar para construir uma utopia, ele fala de uma utopia concreta ao invés de uma utopia abstrata, uma utopia enraizada no presente, sempre operando “da tensão entre a denúncia de um presente que está se tornando mais e mais intolerável e o anúncio de um futuro a ser criado, construído – politicamente, esteticamente e eticamente – por nós, homens e mulheres” (FREIRE, 1994, p.91). Para tanto, o autor defende a ideia de que: se, dizer a palavra verdadeira é transformar o mundo, esse direito não deve ser o de algumas pessoas e sim de todas. “Sem sonhos não há vida, sem sonhos não há seres humanos, sem sonhos não há existência humana” (FREIRE, 2009, p.41). Para que os sonhos se tornem possíveis, numa perspectiva utópica de um tempo que ainda não veio, é preciso trabalhar e educar a esperança, não uma esperança vã, pura resignação, mas uma esperança ativa que constrói alicerces para alcançar os sonhos. Talvez nestes tempos sombrios de crise sanitária, política e econômica trazer a leitura e a prática de Paulo Freire nos ajude a perceber a brutalidade do capitalismo, e nos ajude a relembrar, a repensar alguns princípios que são fundamentais para oportunizar novas formas de vivências humanas, porque sempre é tempo da gente reiniciar novos caminhos, a amorosidade freireana sempre nos instiga a pensar que é possível mudar as relações entre os seres e o mundo. 1 Professora da Universidade Federal de Campina Grande, vinculada ao Centro de Desenvolvimento Sustentável do Semiárido e educadora popular da rede Enfoc. 2 Para Paulo Freire dentro dos contextos históricos temos problemáticas, temáticas que sintetizam as preocupações mais amplas daquele determinado momento, e concentram as ações do Estado e da Sociedade em torno dos mesmos, no momento atual, vivemos uma questão epocal, que interfere em todas as dimensões coletivas e individuais da sociedade, que é a pandemia do coronavirus. 3 Em Pernambuco esta Campanha tem a coordenação da Federação das trabalhadoras e dos trabalhadores na Agricultura Familiar – Fetape e várias entidades parceiras que atuam com Educação Popular no Estado. 4 Educação e atualidade brasileira originalmente é a tese de Paulo Freire escrita em 1959. Foi concebida com a finalidade de atender às exigências do concurso para efetivação como professor da cadeira de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas Artes da Universidade do Recife. 5 McLaren é estudioso de pedagogia crítica e leciona na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, é um pesquisador canadense, naturalizado americano. 6 Quando Paulo Freire escreveu Pedagogia do Oprimido se utilizava o gênero masculino para se referir aos seres humanos, posteriormente, ele mesmo faz uma crítica a essa forma de escrever, como influencia de uma visão patriarcal da linguagem e passa a adotar as duas formas de escrita. REFERENCIAS FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 13. ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1984. . Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. S. Paulo: Paz e Terra, 1992. . À sombra desta mangueira, São Paulo, Olho D’água, 1995. . Pedagogia da Autonomia. São Paulo, 1997. . Pedagogia da Tolerância. São Paulo: UNESP. 2004. . Pedagogia da Solidariedade. São Paulo: Villa das Letras Editora, 2009a. . Professora sim, tia não. São Paulo: Editora Olho d’Água, 2009b. Pedagogia: diálogo e conflito / Moacir Gadotti, Paulo Freire e Sérgio Guimarães. 4. ed. – São Paulo: Cortez, 1995. MACLAREN, Peter. A vida nas escolas: uma introdução à pedagogia crítica nos fundamentos da educação. Porto Alegre: Artes Médicas. 1987. NETO, José Batista; SANTIAGO, Eliete. Contribuições de Paulo Freire para o Pensamento Educacional Latino Americano. Interritórios | Revista de Educação Universidade Federal de Pernambuco. Caruaru, BRASIL. | V.2 | N.2 [2016] SHERER-WARREN, Ilse. Movimentos Sociais: um ensaio de interpretação sociológica. Florianópolis: UFSC, 1998. Publicado originalmente en: fetape.org.br      


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